Pejotização na Relação entre Médicos, Hospitais e Clínicas Médicas: Aspectos Legais e Jurisprudenciais, por Eduardo Machado de Assis Berni

Com frequência, os tribunais têm debatido a relação entre médicos, hospitais e clínicas médicas, especialmente ao discutir a natureza dos contratos propostos.

 

É possível que os sócios da sociedade médica não atendam ao objeto social mediante sua exclusiva atuação, hipótese em que a sociedade possuirá a necessidade de contratar mão de obra médica de não sócios através de (a) relação de emprego; (b) profissional autônomo; ou (c) sociedade de prestação de serviços médicos, sendo a última a hipótese apresentada e a mais comumente observadas diante de seus benefícios financeiros.

 

Nessas hipóteses, a minuta contratual deve ser considerada como item “secundário” para a segurança jurídica nas contratações, sendo a contextualização jurisprudencial essencial para que se compreenda a forma pela qual os tribunais vêm interpretando os contratos.

 

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, desde o ano de 2023, vem cassando diversas decisões da JUSTIÇA TRABALHISTA por desconsiderar contratações privadas e afirmar que o vínculo jurídico seria laboral.


Na realidade, desde o julgamento no qual o STF considerou constitucional as terceirizações (Lei 13.467/2017) da atividade-fim da empresa, passou-se a examinar e pronunciar a também legalidade da “pejotização da atividade-fim”. 


No mesmo sentido, na ADC 48 e na ADI 3.961, foi reconhecida a natureza civil da relação comercial entre empresa e transportadores autônomos, enquanto, na ADI 5.625, o Plenário desta Corte fixou a validade dos contratos de parceria firmados entre estabelecimentos e trabalhadores autônomos do ramo da beleza.


Em 12.09.2023, na RECLAMAÇÃO 61.115, o MIN. ALEXANDRE DE MORAES, em ação envolvendo, de um lado, um HOSPITAL, e de outro, uma médica, e tendo por objeto o reconhecimento de vínculo empregatício com o Hospital e a invalidação de contrato de prestação de serviços firmado entre duas pessoas jurídicas (o hospital e a empresa que a médica era sócia), a JUSTIÇA TRABALHISTA pronunciou a ilegalidade do fenômeno da ‘pejotização’ (confusão entre empresa contratada e profissional responsável pela execução do serviço), mesmo em casos de o médico ser sócio da pessoa jurídica, possuir alto padrão remuneratório e prestar os mesmos serviços médicos e autônomos para diversas outras instituições de saúde.


O caso, ao final, foi levado ao STF (, onde foram invocados os princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência para garantir que o empreendedor escolha o modelo organizacional dentro do livre exercício da atividade econômica, reconhecendo a licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação de emprego regida pela CLT.


Como resultado, o STF cassou a decisão da Justiça do Trabalho por ofensa ao Tema 725-RG (RE 958.252, rel. Min. LUIZ FUX) e à ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), julgando improcedente a ação trabalhista.


No caso exposto, se tratava de médico plantonista com carga horário muito maior do que os médicos contratados pela clínica, o que representa um elemento de maior estabilização do contrato de prestação de serviços que se pretende firmar.


De extrema relevância o fato de que, na RECLAMAÇÃO 61.115 a parte reclamante apresentou recurso com objetivo de estabelecer o determinado distinguishing e defender a tese de que (a) o STF não poderia examinar a presença, ou não, dos requisitos configuradores da relação trabalhista (artigos 2º, 3º e 9º da CLT) por envolvem exame fático-probatório que não cabe à Corte Constitucional; (b) o STF não teria vedado a possibilidade de a Justiça Trabalhista se reconhecer, caso a caso, a existência de vínculo empregatício entre a prestadores e tomadores de serviços quando presentes os requisitos da relação de emprego (subordinação, pessoalidade, não-eventualidade e onerosidade) e a fraude à legislação trabalhista; (c) não sendo hipótese de discussão, em abstrato, da possibilidade de pejotização a atrair as teses já definidas pelo STF.


Em “análise” dos referidos fundamentos, o STF apenas proclamou “que há aderência entre o ato impugnado e os paradigmas invocados” por entender que, no caso julgado, “a decisão reclamada considerou ilegítima a terceirização dos serviços prestados para a reclamante”.


Ou seja, há uma tendência por parte do STF em proclamar a violação a suas teses de forma genérica sempre que houver decisões de reconhecimento de vínculo, não obstante o fato de a mesma ter sido adotada com base em circunstâncias concretas, no âmbito trabalhista.


Em 05/06/2023, na RECLAMAÇÃO 57.917, o STF, através do MIN. DIAS TOFFOLI, resolveu demanda envolvendo HOSPITAL e sociedade jurídica unipessoal composta por médico anestesiologista que buscava o reconhecimento de vínculo trabalhista, o que fora reconhecido pelo TRT da 2ª Região sobretudo por considerar que o hospital contava com apenas dois médicos anestesistas que deveriam permanecer à disposição do hospital para cirurgias emergenciais, em regime de plantão de 24 horas. ?


Na análise do caso, o STF cassou a decisão proferida pela Justiça do Trabalho por reconhecer a “aderência estrita da temática suscitada nesta reclamatória com o julgado na ADPF nº 324 e a tese do Tema nº 725 da RG” (compatibilidade dos valores do trabalho e da livre iniciativa na terceirização do trabalho), afirmando a “regularidade da contratação de pessoa jurídica constituída como sociedade unipessoal para a prestação de serviço médico” com base na “livre iniciativa na terceirização do trabalho” e na “liberdade aos agentes econômicos para eleger suas estratégias empresariais” e na “ausência de condição de vulnerabilidade na opção pelo contrato firmado na relação jurídica estabelecida que justifique a proteção estatal por meio do Poder Judiciário”.


Novamente, a realização de distinguishing capaz de evidenciar peculiaridades do caso concreto pelo Tribunal Regional do Trabalho não foi suficiente para evitar a cassação da decisão (com exceção do voto vencido Ministros Edson Fachin (Relator) e André Mendonça que consideraram que a decisão pelo reconhecimento do vínculo não se deu com fundamento na ilegalidade da terceirização da atividade meio ou fim, mas diante da comprovação da constituição de pessoa jurídica como o escopo de fraudar a legislação trabalhista, não sendo caso de presunção da fraude, mas de “exercício abusivo”, afastando a aderência estrita ao paradigma apontado como afrontado).


De qualquer forma, prevaleceu o entendimento da maioria (Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Nunes Marques) no sentido de que estando a conclusão adotada pelo Tribunal Trabalhista a contrariar os resultados que se espera sejam produzidos em face das teses firmadas no STF, seria hipótese de cassação.


Na RECLAMAÇÃO 59.047,  de 01.05.2023, o Ministro NUNES MARQUES entendeu que “a despeito da existência de contrato firmados entre pessoas jurídicas, foi reconhecida relação de emprego com o trabalhador prestador dos serviços, em desconformidade com entendimento desta Corte que admite a validade constitucional da terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas”, sem que o Tribunal Trabalhista tivesse indicado o “exercício abusivo da contratação com a intenção de fraudar a existência de vínculo empregatício”, afirmando-se o “descompasso com a orientação desta Corte firmada no julgamento da ADPF 324”.


Assim, mesmo reconhecendo que o caso julgado “não possui estrita aderência com os objetos da ADC 48 e das ADIs 3.991 e 5.625, que não tratam de contratos de prestação de serviços médicos, como no caso”, o STF adotou a tese de “validade de relações civis em contratações de prestação de serviços, na esteira do decidido na ADPF 324 e no RE 958.252” para cassar a decisão proferida pela Justiça do Trabalho e determinar que outra seja proferida, em conformidade com o decidido na ADPF 324.


No caso a parte contratante sustentou não ter sido indicada a existência de fraude ou vício de consentimento no contrato de natureza civil de modo a desconsiderar o princípio da autonomia da vontade, gerando o acolhimento da tese de que “não foi indicado qualquer elemento concreto que indique exercício abusivo da contratação com a intenção de fraudar a existência de vínculo empregatício”.


Ademais, foi relevante a circunstância de que a Justiça Laboral ter considerado que “a presunção natural é considerar a relação jurídica havida como sendo de emprego, não havendo, fundamento, fático ou legal, para negar a existência do vínculo empregatício” o que pode ter levado o STF a pronunciar a “desconformidade com entendimento desta Corte que admite a validade constitucional da terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas”.


Na RECLAMAÇÃO 47.843, de 08/02/2022, Ministro ALEXANDRE DE MORAES, o Tribunal Regional do Trabalho deu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público do Trabalho, por concluir ser fraudulenta a contratação de médicos como pessoa jurídica, decisão mantida no TST. No STF, contudo, a decisão restou cassada sob o fundamento de que o tema envolveria “na questão de fundo, discussão sobre licitude ou ilicitude e terceirização pela chamada "pejotização" - termo cunhado a partir da criação de pessoas jurídicas para o recebimento de vencimentos, ou seja, a contratação de pessoa jurídica -, formada por médicos prestadores de serviços a hospital tomador de serviços”, buscando, assim, preservar a autoridade do STF “sob pena prevalecerem soluções antagônicas para a mesma controvérsia de direito”.

 

A jurisprudência do STF vem afirmando não ser o contrato de emprego a única forma de se estabelecerem relações de trabalho, sendo admitido, ainda que na mesma estrutura, a contratação de profissionais pelo regime da CLT e outros profissionais com atuação eventual ou maior autonomia, por meio de contratos de parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização).


Contudo, diante da recente e atual posição do STF, a justiça trabalhista, “em resposta”, vem apresentando novos questionamentos aos contratos civis sob o fundamento de que, nos casos analisados, não estaria pronunciando a ilegalidade da terceirização da atividade meio ou fim da contratante, eis que o reconhecimento do vínculo decorreria da comprovação, em cada caso, de que a constituição de pessoa jurídica teve por escopo de fraudar a legislação trabalhista porque presentes os requisitos da relação de emprego, sendo caso de “exercício abusivo” do direito de contratar, pressupostos fáticos que não poderiam ser avaliados pelo STF através do instituto processual da Reclamação.


Assim, mesmo diante da orientação do STF, sempre é possível que se busque a configuração de relação de emprego quando presente o elemento da subordinação, identificado, sobretudo, na definição de horário a cumprir e outras metas.


Relevante, também, sempre será a comprovação de que o serviço prestado pelo médico não possua as características da relação de emprego (arts. 2º e 3º da CLT), como a pessoalidade (impossibilidade de substituição na execução de suas tarefas), a continuidade e, sobretudo, a subordinação jurídica, técnica e econômica do tomador dos serviços.  


Em contratos dessa natureza, é incontroversa a prestação dos serviços e controvertida a existência de vínculo civil ou de emprego, hipótese em que o ônus probatório pode impor à parte reclamada comprovar a relação de natureza autônoma e a inexistência de subordinação e pessoalidade para afastar a configuração de fraude trabalhista resultante da denominada ‘pejotização’,


Em suma, portanto, ainda que o Supremo Tribunal de Federal venha considerando válida a contratação de serviços médicos através de Pessoas Jurídicas, sempre que estiverem presentes os requisitos da relação de emprego (pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade, consoante art. 3º da CLT).


A contratação entre empresas possui, como norte, a tributação da renda, sendo opção da parte contratada o regime de distribuição de dividendos isentos no lugar da retenção de 27,5% a título de IR na hipótese de contratação pela CLT. No outro polo da relação, a parte contratante não ficará exposta a encargos como aviso prévio, 13º, férias, FGTS, adicionais etc. Esta “desoneração” da parte contratante que costuma ser alegada como fundamento para a invalidação do contrato civil, sob o entendimento de que a supressão desses encargos seria, ao final, lesiva aos direitos dos empregados.


No caso da contratação de médicos através de “suas” pessoas jurídicas, (1) a pessoalidade acaba se mostrando presente, pois a contratante demandará que os serviços sejam, ao final, prestados por profissional determinado, não podendo ser delegado a terceiro, pois a fidúcia no profissional escolhido é elemento do contrato; a (2) habitualidade vai depender da frequência que o profissional atuar, sendo comum a utilização do parâmetro semanal (2 vezes por semana) para sua configuração; (3) a onerosidade não é um problema, pois, independente da natureza da relação, sempre haverá remuneração em face das horas trabalhadas, sendo relevante o fato de que profissionais com remuneração mais alta levariam a uma presunção em favor da pejotização; (4) a subordinação consiste em um dos requisitos mais complexos, pois, mesmo em relações entre grandes corporações, haverá a necessária sujeição às regras e diretrizes empresariais. No caso dos médicos, a subordinação pode se mostrar presente no atendimento à escala de plantões e observância ao regimento interno da parte contratante.


Portanto, é de se observar e concluir que a presença dos requisitos sempre demandará uma análise subjetiva no preenchimento dos requisitos da CLT, análise a ser feita, em cada casa concreto, pela Justiça do Trabalho, o que motivou a recente intervenção do STF no sentido de cassar decisões de reconhecimento de vínculo, sobretudo em relações entre profissionais hipersuficientes, assim considerados aqueles que exerçam atividades intelectuais, hipótese em que o STF estaria considerando equivocada a presunção de ilicitude do contrato ou fraude à legislação trabalhista que embasa a jurisprudência trabalhista.


Dentro desse contexto jurisprudencial, é requisito essencial que a pessoa jurídica contratada preste, de forma concomitante, os mesmos serviços para outros contratantes, afastando-se a exclusividade. Aliado a esse ponto, cumpre definir, em contrato, o interesse da parte contratada na constituição de pessoa jurídica com o objetivo de reduzir sua carga tributária, o que pode constar no preâmbulo do contrato.


A opção pela parte contratada por um modelo de negócios que mais de adeque a seu interesse econômico é elemento que pode ser utilizado para demonstrar a inexistência de vulnerabilidade na opção pelo contrato firmado e na eleição da relação jurídica que será estabelecida entre as partes, componente relevante para fundamentar a desnecessidade de qualquer intervenção ou proteção estatal por meio do Poder Judiciário.


Trata-se de mais um elemento, ainda que, na seara trabalhista, já se tenha entendido que o “benefício” fiscal auferido pelo profissional que optou pela pejotização seria matéria a ser analisada pela receita federal, não sendo elemento para afastar o reconhecimento do vínculo empregatício.


Portanto, o recente e atual posicionamento do STF é ponto importante, mas não final na discussão que se tem acerca de eventuais fraudes na constituição de pessoas jurídicas para prestação de serviços de seus sócios, devendo, caso a caso, ser analisados elementos concretos como (a) o requisito da exclusividade não afasta a configuração do vínculo empregatício; (b) quantidade de profissionais atuando para a contratante em determinada especialidade; (c) disponibilidade da parte contratada em escadas fixas ou em “regime de plantão”; (d) impossibilidade de o profissional vinculado à pessoa jurídica contratada fazer-se substituir no atendimento do objeto do contrato; (e) importância de estabelecer, no contrato, como objeto, a contratação de um serviço determinado, com vistas a obtenção de um resultado e não a contratação de uma pessoa ou de sua disponibilidade;


Ou seja, a jurisprudência do STF pode ser afastada quando, no âmbito trabalhista, houver êxito por parte do reclamante na comprovação do denominado “distinguishing” entre o interesse no reconhecimento do vínculo e as teses acolhidas pelo Supremo (ADPF 324) mediante a prova de que a constituição de pessoa jurídica teve por escopo de fraudar a legislação trabalhista, estando presentes os requisitos reveladores da existência da relação de emprego (arts. 2º e 3º da CLT).


Nesse sentido, sempre haverá dificuldade prática no afastamento dos requisitos da pessoalidade e das não eventualidade, pois é da natureza do contrato o fato de que a pessoa jurídica contratada tenha a obrigação de prestar serviços regularmente para a contratante, integrando escala permanente de trabalho, bem como a impossibilidade de que o médico habilitado se faça substituir por outro médico.


Da mesma forma, o requisito da subordinação sempre poderá ser analisado pela condição de autonomia do profissional, como o direito de recusar-se ao cumprimento de plantões, bastando que se fizesse substituir por outro colega de equipe. Nesse sentido, a necessidade de o médico justificar caso não possa atender ao plantão ou a obrigação de cumprimento da escala caso não houvesse quem substituísse, bem como a existências de consequências para o médico que faltasse em um plantão seriam elementos que levariam aos requisitos da pessoalidade e subordinação.


Sobretudo porque todo o serviço de natura intelectual possui caráter personalíssimo, o que demanda a obrigação de que seja executado exclusivamente pelo profissional escolhido. No mesmo sentido, importa destacar a relevância que se tem dado a inexistência de hipossuficiência da parte contratada, onde se analisa o elevado grau de escolaridade, o valor da remuneração como elementos a indicar a capacidade de a parte contratante fazer uma escolha esclarecida sobre sua contratação, elementos que devem ser trazidos para a realidade dos contratos que se pretende firmar.


Assim, considerando a dificuldade de analisar, caso a caso, quando estarão presentes ou ausentes esses requisitos, é de se concluir que a assinatura de contrato de prestação de serviços com pessoa jurídica não é o único elemento para conferir segurança jurídica à parte contratante, sendo fundamental que se analisem as práticas do negócio para evitar que, uma vez estabelecido o contencioso trabalhista, seja comprovada a contratação de profissional determinado através de uma “pessoa jurídica” para que, na realidade, seja exigida a prestação de serviços pessoal e habitual, de forma subordinada e mediante o pagamento de salário.

 

Ainda que não seja essa a realidade encontrada nos julgados aqui selecionados, não é possível dizer que a Justiça do Trabalho não esteja, ainda, buscando a comprovação da subordinação jurídica e da pessoalidade do profissional vinculada à pessoa jurídica contratada como a pessoa jurídica contratante, ônus probatório que, uma vez atendido, permitiria o reconhecimento do vínculo empregatício sem afronta à jurisprudência do STF, pois, no contencioso laboral, as normas jurídicas trabalhistas são de natureza cogente e independeriam  da vontade das pessoas envolvidas.